PROFESSORES DE BANCADA
O meu quarto guardava um mundo e nas suas paredes estavam os cinco continentes, representando todos os países que participaram no Mundial de 82. Lá no alto, no meio da parede, estavam desfilados os melhores jogadores do mundo. Apenas cabeças de homens com nomes estranhos, estranhíssimos. Mas eram caras de homens. Pôster grande, com gente de não sei aonde. Eu ficava de frente, com o pescoço levantado, às vezes, punha uma cadeira para alcançá-lo mais um bocadinho, olhar os jogadores cara a cara, admirá-los sem saber pronunciar os seus nomes.
No meu quarto havia também um rádio que falava línguas estranhas, bizarras. Não percebia o que os homenzinhos e as mulherzinhas falavam lá dentro. Só falavam quando o rádio tinha pilhas e mesmo assim era preciso carregar num botãozinho e soavam vozes esquisitas. Elas me transportavam para um universo longínquo, tão longínquo que até me perdia na imensidão e na escuridão do meu quarto. Nas “noites européias” era ouvir aquele locutor a narrar a saga do Benfica pelos campos e imaginar a bola saltando dentro do rádio e os homenzinhos, coitados, correndo à busca de não sei o quê. Só eles é que sabiam. É goooooooolo! Era um espetáculo ouvir o homem a berrar, chegando ao êxtase por alguém ter conseguido introduzir uma bolinha numa baliza escondida no meio dos vários diodos, resistências e fios entrelaçados.
Eu fui-me apercebendo que havia jogadores que tinham a mesma camisola. “Se calhar emprestavam um ao outro para saírem na foto” pensava eu. Reparei que todas as camisolas tinham um desenho no lado direito das mesmas. Era uma bandeira. Cada país com a sua bandeira. “Mas o meu país tem a mesma bandeira que Guiné! Ou é a Guiné que tem a mesma bandeira?” não sabia a resposta. Eu queria saber as respostas. Foi aí que começou a minha paixão pelas bandeiras. Eu queria saber a bandeira de cada país. Mas são tantos países!
O meu sonho era conhecer todos os países do mundo. Para viajar o mundo todo era preciso estudar muito. Saber falar línguas. Línguas estranhas e bizarras. Isso era difícil! Não sabia ler nem escrever.
Comecei a rabiscar e querer ir para a escola. “Eu quero aprender. Eu quero saber mais para conhecer o mundo. Esse é o meu sonho”. Enquanto eu não ia à escola eu ficava a imaginar como é que as pessoas que entravam dentro do rádio relatavam os jogos. Os meus irmãos, um benfiquista e outro sportinguista, tinham um caderno que anotavam todos os jogos, os jogadores das equipas e os marcadores dos golos. Eu queria era ser um desses marcadores para que todo o mundo ouvisse o meu nome a ser gritado e berrado nos rádios. Diziam “Benfica jogou em casa esta semana, na outra irá jogar fora. Sporting jogou fora nesta semana será em casa”. Jogar em casa e jogar fora. Como seria? Mergulhava no mundo da imaginação: toda a equipa entrava dentro de uma casinha e jogava à bola. Na semana seguinte, quem chegava tarde e encontrasse a porta fechada, jogava fora. Eu queria que o Benfica jogasse sempre em casa. Não queria que ficasse lá fora, porque havia dias em que o locutor dizia no seu relato: “chove copiosamente no estádio da Luz” ou “o jogo está a ser disputado debaixo de uma intensa chuva”.
Lembro-me da minha equipa local, a Académica. Saía do interior e ia jogar na vila. As pessoas diziam que ia jogar com o Beira-Mar ou com os Onze unidos e ficava a imaginar: os jogadores ficavam à beira-mar jogando a bola na areia da praia ou se o jogo era com Onze unidos, apanhavam onze jogadores e juntavam no mesmo lugar, ficando todos unidos para não ficarem fora de casa.
Eu fui crescendo e fui me apaixonando cada vez mais pelo futebol. Aqueles homens das paredes do meu quarto eram meus mestres sem cintos, treinadores sem equipa. Eram homens como eu. Eu conhecia-os, mas eles não. Percorria as minhas mãos pelo rosto de cada um e sentia que me diziam: “Um dia serás um dos nossos. Vestirás esta camisola, rapaz”. Mas eu interrogava: “Qual é o seu nome?”. Não respondiam. Reparava que debaixo das suas fotos existia um emaranhado de letras que mais tarde vim descobrir que eram os seus nomes. Nomes como o meu, mas que não sabia pronunciar. Era preciso ir à escola para saber pronunciar aqueles nomes estranhos e impronunciáveis.
Quando fui à escola, chegou então o momento de conhecer as letras: “A” de asa; “E” de égua; “I” de ilha; “O” de ovo; “U” de uva. Mas isso, não me bastava. “B” de Beto; “C” de casa, “D” de dedo,... A partir desse momento comecei a formar palavras e a pronunciá-las. Podia? Não. Ainda faltava muito. Uma consoante com uma vogal forma uma sílaba. Sílabas se juntam e constituem uma palavra. Qual palavra? Era mais fácil identificar uma bandeira do que um nome. Passava o dedo por cima de nomes como Waleed Al-Jasem Mubarak, Karl-Heinz Rummenigge ou Jozef Mlynarczyk. Eram nomes esquisitos. Se calhar eram os nomes estranhos e impronunciáveis como os que saíam do rádio. Mas eram seus nomes.
Ainda me lembro soletrando os sons dessas palavras e o mundo do futebol entrava cada vez mais em mim. No campo, atrás dos animais, enquanto a minha inocência me permitia, ensaiava os relatos da Antena1. “Boa tarde. Sou Costa Martins. Vamos agora começar a nossa tarde desportiva, aqui na Antena 1, o canal do desporto da RDP... Senhores ouvintes vamos tentar um primeiro contacto com o repórter Óscar Coelho no estádio da Luz,... Rui Almeida no estádio José de Alvalade,... Sansão Coelho , no estádio Municipal de Chaves, Rui Orlando no estádio das Antas,...” e fazia constituição das equipas e começava a relatar os jogos: “Num estádio da Luz completamente cheio, a equipa do Benfica vai jogar com Bento na baliza, Álvaro, Dito, Mozer, Veloso, Shéu, Pietra, Diamantino, Carlos Manuel, Rui Águas e Mats Magnussen...” e a bola que corria nos meus lábios e percorria os labirintos do meu imaginário e me acompanhava na minha solidão. Enquanto as cabras comiam as verdes pastagens, seguia os meus sonhos fazendo uma rodada pelos estádios, percorrendo o infinito do meu imaginário.
Ainda me lembro de nomes que saíam debaixo do meu dedo: Nkono, Maradona, Milla, Schumacher, Brazil, os “ev”, os “ov” os “insky” do leste europeu, os “ic” da Yugoslávia, os “ini” da Itália.
Entrei na escola em 1986, poucos meses depois da Copa do mundo no México. Ainda que a minha primeira composição fosse sobre os animais domésticos, o mundo da bola invadia o meu ser. Eu só lembrava em Maradona, Olarticoechea, Burruchaga e companhia lutando ferozmente contra Schumacher, Littbarsky e Rummenigge. Todo o México estava no meu imaginário. Comecei a minha composição:
“Os animais do México.
Os animais do México que eu conheço são: cabra, vaca, cão, cavalo, gato, etc.
Eu gosto dos animais do México.
Os animais do México dão leite, queijo, peles e chifres.
Os animais do México vivem junto do homem.
Os animais do México são bons.
O cavalo corre...
Não conseguia dizer como é que o cavalo corria. Procurei ajuda num pôster onde tinha decorado alguns nomes. Nenhum nome me ocorria. Eu pensava em crioulo: “kabalu ta kóré txeu” [1]. Mas como traduzir “txeu” para o português? Eu me rebolava em todas as direções e, nada! Lembrei-me de um jogador do Benfica chamado Shéu Han. Voltei rapidamente para o meu texto e terminei a última frase da composição: “O cavalo corre shéu.” Ponto final. Fui o primeiro a terminar.
Corri para a secretária da professora e mostrei-lhe a minha primeira composição. Estava cheio de alegria com o feito. “Ela irá gostar. Escrevi coisas bonitas. Ninguém fez melhor que eu” – pensava radiante. A professora começou a ler. À medida que lia eu ficava mais garboso com a sua leitura. Até que... “o cavalo corre shéu???” acompanhado com o nó do dedo no cocuruto da cabeça. A sala encheu-se de gargalhadas. Eu só pude ir para o meu lugar cabisbaixo, mas com a certeza de ter realizado o meu ofício.
Todo o meu percurso escolar foi marcado pela vontade de aprender. Terminada a 4ª classe e meus pais sem condições de me permitirem continuar os estudos, lembro-me da minha mãe contar: “Passei ao pé da mesa e encontrei um teu bilhetinho que dizia ‘mamã eu quero estudar na Vila’”. E fui.
Hoje, eu percorro a estrada de volta para do meu passado e revejo que apesar de ela ser longa e tortuosa consegui alcançar a aprendizagem através das imagens dos jogadores do meu quarto, os relatos, as vozes estranhas e bizarras que saíam do rádio me empurrando cada vez mais nesse emaranhado mundo da aprendizagem.
Ricardino Rocha,
Escola Secundária Abílio Duarte – Praia – Cabo Verde
[1] "Kabalu ta kóri txeu" significa “O cavalo corre muito”.
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